Marcelo
Lemos*
'Apocalipse',
novela da Record TV (2018), não faz o mesmo sucesso que 'Dez Mandamentos'
(Record TV, 2015). Ainda assim, o capítulo que retratou a teoria do
arrebatamento secreto rendeu bons números no IBOPE. Mas, por que digo teoria
do arrebatamento secreto? Porque, ao contrário do que boa parte do público
possa acreditar, o arrebatamento secreto não é uma doutrina histórica da
Igreja, tendo surgido no início do Século XX, ou seja, há pouco menos de 200
anos. Existe uma pretensão de datação mais antiga com base em duas alegações de
antiguidade (BRAY, 1995; JEFFREY, 1995; apud MACPHERSON)1, mas não passa
disso, uma tentativa de dar à teoria uma autoridade histórica até agora
desconhecida.
Entretanto,
como essa é uma teoria é extremamente popular, muitos sequer imaginam que a fé
histórica da Igreja jamais falou de um arrebatamento secreto. Há uma reação
imediata quando experimento comentar, com alguns familiares e amigos, a teoria
por trás da novela ‘Apocalipse’. “Todas as Igrejas ensinam isso”. Ou, “sempre
acreditei dessa forma, porque é exatamente isso que a Bíblia diz”. E é bem
possível que a maioria das igrejas evangélicas a ensinem,
mas não é verdade que todas façam isso. Também precisamos questionar se é verdade
que a Bíblia lhe dá algum suporte.
Vamos
olhar para o que ensina a teoria do arrebatamento secreto. Em termos práticos,
essa teoria diz que Jesus Cristo virá mais duas vezes ao mundo. Hunt,
renomado defensor do arrebatamento secreto, afirma isso textualmente em um
artigo publicado no site da revista Chamada da Meia Noite. Ele afirma que,
primeiro, Jesus irá voltar sem aviso, antes da Grande Tribulação, o que pegará
a maior parte das pessoas de surpresa. Porém, o autor defende que esta não será
a única vinda, pois “as Escrituras ensinam outra vinda de Cristo”, após a
Grande Tribulação, “quando todos os sinais já estiverem sido cumpridos e todos
souberem que Ele está voltado”. Sem rodeios, o autor declara que é impossível
escapar “do fato de que duas vindas de Cristo ainda se darão
no futuro: [...] as duas não podem ser o mesmo evento” (CHAMADA, 2012, grifos
nossos)2.
Apesar das declarações de Hunt, geralmente um defensor do
arrebatamento secreto não costuma falar abertamente uma Segunda e uma Terceira
Vinda. Sua literatura irá usar apenas a expressão Segunda Vinda, por mais que
isso signifique uma contradição interna na teoria. E, como veremos, o ensino sobre duas vindas de Cristo no futuro não pode ser encontrado nas
Escrituras. Para resolver esse problema, a maioria dos seus defensores
argumentam que, de fato, haverá somente uma Segunda Vinda, porém, dividida em duas fases. Essa explicação, que difere
das afirmações de Hunt, pode ser encontrada na Teologia Sistemática de Thomas Paul Simmons, publicado no site
Palavra Prudente. No capítulo intitulado ‘As Duas Fases da Vinda de Cristo’,
autor não apenas defende uma Segunda Vinda em duas fases, como também admite que a Bíblia ensina apenas uma vinda
futura, ao mesmo tempo que desdenha da óbvia contradição que isso produz em sua
teoria escatológica.
Nossos
oponentes escarnecem da ideia de um período de tempo entre as duas
fases da vinda de Cristo. Dizem que ensinamos que haverá duas vindas em
vez de uma. Podem chama-la o que quiserem. O Novo Testamento fala
só de uma vinda, mas claramente revela que essa uma vinda consistirá de
duas fases, separadas por um período de tempo. Preferimos crer o que ele
ensina, desatendendo as perversões dele (PALAVRA PRUDENTE, acesso em 8 mai.
2018, grifos nossos)3.
A
conclusão é que a teoria do arrebatamento secreto implica dizer que haverá duas vindas de Cristo. Como já vimos,
tal conclusão é apontada também por alguns de seus próprios teóricos (CHAMADA,
2012), não sendo, como
sugere Simmons, acusação de oponentes escarnecedores. Outro renomado teórico
dessa interpretação chega a falar em uma “tríplice divisão natural” (DA SILVA,
1988, pg. 12, grifos nossos)4 da Segunda Vinda, uma para a Igreja,
no Arrebatamento, outra para Israel, no término da Grande Tribulação, e uma
terceira, contra Gogue e Magogue, no término do Milênio. Uma coisa é certa: compreender
a teoria é muito trabalhoso, por mais que afirmem que ela seria claramente
ensinada nas Escrituras. Seja como for, continuaremos nossa análise
perguntando: e o que acontecerá nas eufemisticamente chamadas5
duas fases da “Segunda
Vinda”?
Segundo a teoria do arrebatamento secreto, na primeira
Segunda Vinda, Jesus não será visto pelo mundo, mas apenas pelos cristãos. Daí
ser dito que ele será secreto, pois
retirará do mundo os que receberam o novo nascimento, mas deixará para trás os
incrédulos e os falsos crentes [PENTECOST, 2006]6.
Somente a Igreja, portanto, ouvirá o som da trombeta enquanto é levada para
encontrar com Jesus nas nuvens do céu. Livros, filmes, pregações e hinos
baseados nessa ideia falam de aviões desgovernados, porque o piloto foi
arrebatado, ou de pais, filhos e mães que, de repente, desaparecem do mundo.
Foi justamente essa cena que concedeu à “Apocalipse” (Record TV, 2018), um
momentâneo sucesso de audiência. Milhões de pessoas acreditam na teoria, ou
pelo menos, a aceitam sem maiores questionamentos. Já na segunda
Segunda Vinda, a teoria diz que Jesus voltará para colocar fim ao Reino do
Anticristo, encerrando também a Grande Tribulação (que acreditam irá durará
sete anos).
O Novo Testamento, como admite até mesmo autores dessa
escola (PALAVRA PRUDENTE,
2018), fala apenas de uma Segunda
Vinda. “Da mesma forma, como o homem está destinado a morrer uma só vez e depois disso enfrentar o
Juízo, assim também Cristo foi oferecido em sacrifício uma única vez, para tirar os pecados de muitos; e aparecerá segunda vez, não para tirar
o pecado, mas para trazer salvação aos que o aguardam” (Hb 9:27,28, NVI, grifos
nossos). Observe a ênfase do texto na singularidade de cada um dos eventos
citados. Os homens estão destinados a morrerem uma única vez. Assim como Cristo foi sacrificado uma única vez. E voltará, pela segunda vez, para o seu povo. A primeira vinda corporal de Cristo foi na
Encarnação7, por isso sua vinda futura é chamada segunda. Em nenhum lugar a Bíblia fala
de uma terceira vinda. Portanto, falar que acontecerão duas vindas futuras de
Cristo (CHAMADA, 2012), ou que Jesus voltará a prestação, em duas fases (PALAVRA PRUDENTE, 2018), não
resiste ao crivo das Escrituras.
É verdade que a Igreja encontrará o Senhor nos ares. “Depois
disso, os que estivermos vivos seremos arrebatados juntamente com ele nas
nuvens, para o encontro com o Senhor nos ares. E assim estaremos com o Senhor
para sempre” (I Tes 4:17, NVI). Este evento será instantâneo, numa fração de
segundo, como descreve o mesmo apóstolo S. Paulo em I Cor. 15: 51,52: “Eis que
eu lhes digo um mistério: nem todos dormiremos, mas todos seremos
transformados, num abrir e fechar de olhos, ao som da última trombeta. Pois a
trombeta soará, os mortos ressuscitarão incorruptíveis e nós seremos
transformados” (NVI). Mas em nenhum momento se diz que qualquer dessas coisas
acontecerá secretamente.
De fato, a Segunda Vinda de Jesus
será não apenas visível, mas estrondosa, “ao som da última trombeta, pois a
trombeta soará” (I Cor 15:51,52). Essa trombeta também é citada em
Tessalonicenses: “Porque o mesmo Senhor descerá do céu com alarido, e com voz de arcanjo, e com a
trombeta de Deus” (I Tes 4:16, ACF 95). Alguns podem alegar que apenas os
cristãos ouvirão a trombeta de Deus, mas quem diz isso são os teólogos dessa
escola, não a Bíblia. Observe que apóstolo diz que a trombeta que anuncia tais
coisas será a “última trombeta”. Buscando outras passagens das Escrituras
encontramos que todas as nações do mundo presenciarão o toque dessa trombeta, e
não que a Igreja secretamente a ouvirá.
Eis aqui vos digo um mistério: Nem todos
dormiremos; mas todos seremos transformados. Num momento, num abrir e fechar de
olhos, ante a última trombeta; porque a trombeta soará, e os mortos
ressuscitarão incorruptíveis, e nós seremos transformados (I Coríntios
15:51-52, ACF 95, grifos nossos).
E tocou o sétimo anjo a sua trombeta, e houve no céu grandes vozes, que
diziam: Os reinos do mundo vieram a ser de Nosso Senhor e do seu Cristo, e ele
reinará para todo o sempre. E os vinte e quatro anciãos, que estão assentados
em seus tronos diante de Deus prostraram-se sobre os seus rostos e adoraram a
Deus, dizendo: Graças te damos, Senhor Deus Todo-Poderoso, que és, e que eras,
e que hás de vir, que tomaste o teu grande poder, e reinaste. E iraram-se as nações,
e veio a tua ira, e o tempo dos mortos, para que sejam julgados, e o tempo de
dares o galardão aos profetas, teus servos, e aos santos, e aos que temem o teu
nome, a pequenos e a grandes, e o tempo de destruíres os que destroem a terra (Apocalipse
11:15-18, ACF 95, grifos nossos)
Também as mudanças operadas no cosmos por ocasião
da Segunda Vinda desmentem a ideia de que haverá um arrebatamento secreto,
Mas o Dia do Senhor virá como o ladrão de noite, no
qual os céus passarão com grande estrondo, e os elementos, ardendo, se
desfarão, e a terra e as obras que nela há se queimarão. Havendo, pois, de
perecer todas estas coisas, que pessoas vos convém ser em santo trato e
piedade, aguardando e apressando-se para a vinda do Dia do Senhor, em que os
céus, em fogo, se desfarão, e os elementos, ardendo, se fundirão? Mas nós,
segundo a sua promessa, aguardamos novos céus e nova terra, em que habita a
justiça (I Pe 3: 10-13, ACF 95).
A teoria é, no entanto, muito engenhosa e
impressiona quem procura conhecê-la lendo seus manuais teológicos e ficções, o
que pode explicar sua popularidade 8. Por muitos anos acreditei,
preguei e ensinei a teoria do Arrebatamento Secreto sem a menor hesitação. Suas
ficções são repletas de ação e suspense, e seus manuais teológicos enfileiram dezenas
de referências. Acontece que, geralmente as referências bíblicas são isoladas e
sem o trabalho de explica-las expositivamente. A maioria dos autores
parece esperar que o leitor simplesmente confie que os textos citados realmente
confirmem a teoria (veja nota9). Mas, por que as pessoas são convencidas? Talvez
por algum tipo de apelo a autoridade, já que é preciso dedicar muito tempo e
esforço apenas para compreender a lógica desse sistema interpretativo. Nestes
casos, as pessoas tendem a achar mais prático e seguro confiar nos
especialistas. Até porque, o sistema é tão confuso e complexo, que a maioria
terá que consultar os manuais especializados de qualquer maneira. Então, para
facilitar a vida daqueles que não possuem grande treinamento em teologia,
algumas bíblias e manuais incluem infográficos detalhados explicando a
complicada cronologia escatológica. O cenário perfeito.
Quando abandonei a teoria do arrebatamento secreto,
tinha resolvido dedicar várias semanas ensinando sobre ela numa congregação
pentecostal que pastoreava. Mandei imprimir cópias de uma apostila que havia
escrito sobre o tema, e comparecia as aulas munido de dezenas de versículos, e
de um colorido infográfico chamado ‘O Plano Divino Através dos Séculos’. Se
algum aluno não conseguisse entender a teoria apenas com as leituras dos
versículos, geralmente entendia, ou fingia entender, quando olhava para a
cronologia ilustrada nas cores e ilustrações do infográfico. Geralmente
funcionava muito bem. Menos com a irmã Marta. Numa de minhas palestras sobre o
arrebatamento secreto, Marta foi a escolhida para ler algum versículo, que
prontamente eu ia explicando.
- “Pastor”, ela pediu a palavra: “eu também acredito
nisso, mas, honestamente? Os versículos
que estamos lendo não diz nada sobre ser secreto!”. Usei os argumentos
canônicos da teoria, e ainda assim ela insistiu: “Verdade, pastor, também
aprendi assim, e assim creio. Mas eu pensei que pelo menos um texto diria que é
secreto. Me sinto confusa e frustrada por não entender”.
Igualmente frustrado, suspendi as aulas por algum
tempo. Prometi aos alunos que estudaríamos outros assuntos, até que eu pudesse
melhorar a qualidade do material. Estava envergonhado, mas achei melhor admitir
que precisava rever as coisas e retomar o assunto com respostas mais
apropriadas. Como a irmã Marta, descobri que o arrebatamento secreto que eu
havia ensinado por tanto tempo, existia apenas nos manuais escatológicos de
Dallas10, e no belo infográfico que eu mandara emoldurar. Quando
retomei o assunto uns seis meses mais tarde, havia abandonado o
Dispensacionalismo e suas estranhas teorias sobre a Segunda Vinda. Curiosamente, a
irmã Marta preferiu continuar defendendo a teoria, mesmo sem conseguir prová-la.
_________
Bibliografia:
1 MacPherson escreveu no artigo ‘Deceiving and Being Deceiving’, que
os pré-tribulacionistas pretendem provar a antiguidade de sua interpretação
recorrendo aos escritos do Rev. Morgan Edwards, de 1788, e também aos escritos
medievais de Pseudo-Ephraem, 1000 anos antes. Nessa tentativa, explica o autor,
“não apenas encobrem e distorcem” o que já se publicou sobre os dois autores,
mas “também ocultaram e perverteram as próprias palavras” que os dois
escreveram (Preterist Archive, consultado 12 abr. 2018, tradução nossa).
2 A revista Chamada da Meia Noite é uma das publicações mais
populares em defesa do Dispensacionalismo e da teoria do Arrebatamento Secreto
no Brasil. A citação foi extraída do artigo ‘Distinção Entre o Arrebatamento e
a Segunda Vinda’, de autoria de David Hunt, publicado originalmente pela
Revista em 2012, e reproduzida no site (CHAMADA, acesso em 09 mai. 2018).
3 O
Palavra Prudente é um tradicional site de linha batista fundamentalista, criado
pelo missionário norte-americano Calvin Gardner, falecido em 2016.
4 DA SILVA. Pedro Severino; Escatologia: Doutrina das
últimas coisas. 1988. CPAD.
5 Eufemismo é quando uma palavra, locução ou acepção
mais agradável é utilizada numa tentativa de suavizar ou minimizar o peso
conotador de outra palavra, locução ou acepção considerada menos agradável
(GOOGLE, Dicionário, acesso 9 mai. 2018). Mas, ainda que suavize a linguagem, a
fim de causar impacto menor, não altera o conteúdo da afirmação. Daí a o termo
ser usado como sinônimo de “abrandamento, adoçamento,
atenuação, comedimento, mitigação, moderação e suavização” (NORMA CULTA, acesso 9 mai. 2018).
6 PENTECOST, J. Dwigth. Manual de Escatologia: Uma
análise detalhada dos eventos futuros. 2006. Editora Vida.
7 “Esta é
uma palavra fiel e digna de toda aceitação: que Cristo Jesus veio ao mundo,
para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal” (I Tim. 1:15, ARC
1995).
8
‘Deixados Para Trás’ é um bom exemplo: a série de livros vendeu, só nos Estados
Unidos, 70 milhões de exemplares, se manteve por 300 semanas na lista de
best-sellers do ‘New York’, e ganhou uma versão para os cinemas.
9
Severino, por exemplo, na seção que seu livro dedica à explicar a teoria do
Arrebatamento Secreto, apresenta quase 20 textos-prova, sem se dar ao trabalho
de ensinar expositivamente nenhum deles. No entanto, dedica algumas páginas a
explicar termos gregos que, em tese, justificariam a interpretação que ele
adotou previamente (DA SILVA. Pedro Severino; Escatologia: Doutrina das últimas
coisas, pgs. 12-16. 1988. CPAD). Gilberto, outro autor assembleiano, garante ao
leitor que “conforme expomos acima, no arrebatamento, Jesus vem secretamente
para a Igreja. Na Revelação ele vem publicamente para Israel e as demais
nações”. No entanto, o que ele expõe é a teoria do arrebatamento secreto em si,
e o que ela diz sobre os textos. Não há, de fato exposições dos textos
apresentados, ainda que o autor faça um trabalho um pouco mais dedicado ao
defender que a Igreja não passará pela Grande Tribulação, pg. 21ss (GILBERTO.
Antônio, O Calendário da Profecia, pgs. 15-23. 1985.CPAD).
10 Dallas
Theological Seminary, um dos principais polos de difusão da teoria.
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