Rev. Marcelo Lemos
Uma
das coisas que mais me fascinam na Igreja é a liturgia cristã. Tendo crescido numa tradição evangélica supostamente sem-liturgia,
me pergunto como levei tanto tempo para descobrir tão inestimável tesouro de espiritualidade bíblica. E sei que existem supostas
justificativas, algumas das quais abordarei nesta palestra*.
Falaremos aqui de dois argumentos comuns quando tratamos deste
assunto.
Leia também:
O
culto espiritual deve ser feito em liberdade, portanto, o culto
precisa ser improvisado.
Um
culto formal é “frio”, e impede a ação do Espírito Santo.
O
Culto Improvisado
O
conceito de “culto improvisado” é, por si só, um equivoco
cruel. É um equivoco porque, como demonstraremos mais uma vez, não
existe culto improvisado. E é cruel porque priva as pessoas de uma
espiritualidade sadia, forçando-as a se contentarem com menos do que
poderiam receber do culto cristão.
O
equívoco principal aqui é pensar que exista algum culto cristão
desprovido de liturgia. Não existe tal coisa. Todo culto que
prestamos a Deus, por mais simples que for, será um culto liturgico.
Mesmo que o pastor, e demais ministros responsáveis pelo culto, não
usem títulos específicos, e estejam na Igreja de camiseta e shorts,
ainda assim o culto terá algum tipo de liturgia. Esse equívoco se
dá pelo simples fato das pessoas não compreenderem o que a palavra
“liturgia” significa.
A
palavra liturgia significa “serviço”, e é utilizada várias
vezes no Novo Testamento, como nos exemplos a seguir:
LUCAS
1.23: “Terminado o período do seu ministério, voltou
para casa”. A palavra traduzida aqui como “ministério” é o
grego “liturgia”(leitourgia). O texto refere-se a
Zacarias, pai de João Batista, primo de Jesus, que era sacerdote e
estava exercendo seus serviços de adoração no Templo.
ATOS
13.2: “Enquanto cultuavam o Senhor e jejuavam, o
Espírito disse: Separai-me Barnabé e Saulo para a obra para a qual
os tenho chamado”. O verbo que temos nessa tradução,
“cultuavam”, no grego também é “liturgia”. Esse texto é
muito significativo, pois nos informa que o culto da Igreja primitiva
era uma “liturgia”.
No
culto do Antigo Testamento e no culto do Novo Testamento, a própria
Bíblia usa a palavra “liturgia”. Significa dizer que o culto
cristão é um “serviço” de adoração que oferecemos a Deus. E
este serviço não pode ser improvisado, nem feito de qualquer
maneira. Muito pelo contrário! A Bíblia é bem clara ao dizer que
nosso culto precisa ser organizado e racional.
ROMANOS
12.1: “Portanto, irmãos, exorto-vos pelas compaixões de Deus
que apresenteis o vosso corpo como sacrifício vivo, santo e agradável
a Deus, que é o vosso culto racional”.
O
significado de “racional” não é difícil de assimilar: trata-se
de uma coisa que é verdadeira ou lógica. Dizemos que são animais
irracionais seres como os leões, as vacas ou as hienas, pela simples
razão de que eles não pensam racionalmente, agem basicamente
guiados por seus instintos. E Deus exige de nós uma adoração que
seja racional, portanto, nossa adoração precisa ser
inteligente e lógica.
Isso,
por si só, já refuta a ideia de que o culto cristão possa ser
improvisado, sem organização. Deus leva isso tão a sério que o
apóstolo S. Paulo, falando a respeito do dom de línguas, afirmou
que preferia “falar an igreja cinco palavras que se podem
compreender, a fim de também instruir os outros, do que falar dez
mil palavras em uma língua” (I Coríntios 14.19).
Por
isso, até mesmo as igrejas mais simples possuem algum tipo de
liturgia, ou de ordem no culto. Em todas elas há um tempo para
orações, cânticos, leituras e pregações. E aquelas comunidades
que permitem que o culto corra livremente, incorrendo em badernas e
histerísmos, certamente pecam gravemente contra o mandamento do
Senhor, como o apóstolo adverte: “Se alguém se considera profeta
ou espiritual, reconheça que as coisas que vos escrevo são
mandamentos do Senhor. Mas, se alguém não reconhece isso, tal
pessoa não será reconhecida. Portanto, irmãos, desejai
intensamente o dom de profetizar, e não proibais o falar em línguas.
Mas tudo deve ser feito com decência e ordem” (I Cor.
14.37-40).
O
Culto “frio”.
Como
vimos nos texto bíblicos já citados a liturgia não é motivo para
um culto frio. O primeiro exemplo foi um texto em Atos dos Apóstolos,
no qual o próprio Espírito Santo se apresenta no meio da comunidade
e vocaciona Paulo e Barnabé para o serviço missionário. O segundo
exemplo é o texto de Paulo, na Segunda Carta aos Coríntios, onde
ele diz que os dons devem ser exercidos na Igreja com a devida
organização e a devida reverência. Como podemos dizer que a
liturgia impede a ação do Espírito? Ninguém pode saber mais do
assunto que as Escrituras!
É
verdade, no entanto, que o culto pode se tornar chato, monotono, e
frio. Mas isso não é culpa da liturgia, mas do pecado em nossos
corações. Se encarramos o culto cristão como uma coisa mecânica e
sem nenhum significado espiritual para nossa caminhada, certamente
ele será de pouco proveito. Por outro lado, ainda que todos os dias
da semana repetimos o mesmo culto, e até as mesmas orações, se
estivermos com o coração aberto para o que Deus está realizando,
nosso culto será vivo e produtivo. O maior exemplo disso é o
próprio Senhor Jesus.
“Deixando-os,
novamente, foi orar pela terceira vez, repetindo as mesmas
palavras” (MATEUS 26.44).
O
cristão pode, claro, orar diferente a cada oração que fizer a
Deus. Mas ele também pode orar quantas vezes quiser a mesma oração.
O próprio Jesus repetia a mesma oração ao Pai, e ninguém pode
dizer que sua oração era fria e sem a assistência do Espírito
Santo. Além disso, sabemos que Jesus ordenou que seus discípulos
repetissem sempre uma mesma oração, ensinada por Ele, e que a
chamamos popularmente de “Pai Nosso”. Na liturgia a chamamos de
Oração do Senhor, ou Oração Dominical.
“Quando
orardes, dizei: Pai, santificado seja o teu nome; venha o teu
reino; dá-nos diariamente nosso pão de cada dia; e perdoa-nos os
nossos pecados, pois também nós perdoamos a todo que nos deve; e
não nos deixes entrar em tentação, mas livrai-nos do mal” (LUCAS
11.1-4). Por ser mais completa, a liturgia se vale dessa mesma prece nas versão registrada por S. Mateus.
Isso
nos mostra que não existe qualquer justificativa bíblica para se
afirmar que o culto cristão, feito com ordem e decência, impeça a
ação do Espírito Santo na vida da comunidade. Muito pelo
contrário, é o próprio Espírito Santo, autor das Escrituras, quem
exige de sua Igreja um culto que seja inteligente, inteligível e
racional.
Num
próximo artigo falaremos sobre a liturgia e a pureza da adoração,
porque, inquestionavelmente, é possível que a forma como
organizamos nosso culto seja equivocada; se isso acontece, ao invés
de nos aproximar do Evangelho, dele nos afastamos. Certamente não
desejamos cair neste erro. Também falaremos sobre a liturgia e sua
função didática num terceiro artigo*.
*
Estes artigos foram escritos para uma série de palestras que daremos
para o staff missionário que reunimos para plantar a Igreja
Anglicana Reformada do Brasil na cidade de Belo Horizonte, Minas
Gerais. As palestras também abordarão a eclesiologia, a história
e doutrina do anglicanismo da Reforma.
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