Possivelmente, o maior desacerto entre cristãos protestantes e romanos se encontre na disputa a respeito da idolatria. Desde seu início, o Protestantismo tem buscado denunciar e corrigir os erros de Roma no tocante a este tema. A Igreja Anglicana, por exemplo, expressamente afirma em sua declaração de fé o seguinte:
“A doutrina romana relativa ao Purgatório, Indulgências, Veneração e Adoração tanto de imagens como de relíquias, e também à invocação dos Santos, é uma coisa fútil e vãmente inventada, que não se funda em testemunho algum da Escritura, mas ao contrário repugna à Palavra de Deus”.
Ou seja, no Anglicanismo histórico não há espaço para quaisquer das doutrinas ou práticas listadas neste Artigo XXII, dentre outras. Não há Purgatório, não há indulgências, não há veneração e adoração de imagens ou relíquias, e nem mesmo a invocação dos santos. Como coisas fúteis e vãs é como os anglicanos históricos reputam tais coisas. Se alguém as pratica não pode ser chamado anglicano, no sentido histórico, ainda que se apresente como tal – assim como alguém que não tem Bispo jamais poderá se apresentar como anglicano ou episcopal.
Até mesmo a veneração ao Cristo, presente espiritualmente no pão e no vinho da Eucaristia, jamais deve ser aceita, conforme este mesmo documento doutrinário da Igreja Anglicana: “O Sacramento da Ceia do Senhor não foi pela ordenança de Cristo reservado, nem levado em procissão, nem elevado, nem adorado” (39 Artigos de Religião, XXVII). O Cristo está, espiritualmente falando, presente no Pão e no Vinho? Sim, mas nem por isso tais elementos podem ser venerados pelos fiéis.
E os anglicanos certamente não estão sozinhos nessa luta contra a prática da idolatria. A famosa Confissão de Augsburgo, da Igreja Luterana, afirma categoricamente que “não se pode provar pela Escritura que se devem invocar os santos ou procurar auxílio junto a eles”, ainda que seja nosso dever “lembrar-nos deles [dos santos] para fortalecer a nossa fé ao vermos como receberam graça e foram ajudados pela fé”, além de, claro, “que tomemos exemplo de suas obras” (Artigo 21 – Do Culto aos Santos).
Isso não significa dizer que os Reformadores eram todos contrários a todo e qualquer tipo de figura religiosa. É verdade que alguns o eram, como podemos ver, por exemplo, no Catecismo Maior de Westminster, que proíbe até que os fiéis possam imaginar, seja “interiormente no espirito”, seja “exteriormente em qualquer forma” (Pergunta 109), alguma imagem para qualquer das pessoas da Trindade. Ou seja, para o Catecismo Maior de Westminster, se o fiel sequer pensar numa 'figura' para Cristo, já é um idolatra. Evidentemente trata-se de uma proibição impraticável e não-bíblica, uma vez que é simplesmente impossível pensar em alguma coisa ou em alguém sem formar automaticamente uma imagem no espírito. Se eu digo bola, meu cérebro automaticamente “vê” a bola na minha mente. O mesmo acontece se eu digo, leio ou escuto sobre qualquer outra coisa ou ser: Paulo, Jesus, Pedro, Tiago, João, “cordeiro morto”, “mar vermelho”, e assim por diante. Neste particular o CMW é simplesmente antibíblico e irracional.
Por outro lado, alguém como Martinho Lutero, a quem qualquer protestante minimamente informado, e por mais radical que possa ser, irá tributar o mérito humano pela Reforma, pensava o contrário. É dele, dentre outras, a seguinte afirmação: “Quando eu escuto falar de Cristo, uma imagem de um homem pendurado numa cruz toma meu coração, assim como o reflexo de meu rosto aparece naturalmente na água quando eu olho nela. Se não é pecado, mas sim bom em ter uma imagem de Cristo em meu coração, porque deveria ser um pecado de tê-lo em meus olhos?”(Contra os Profetas Celestiais, 1525; LW, Vol. 40, 99-100).
Ironicamente, aquele a quem todos os protestantes atribuem o grande marco da Reforma Protestante, viveu e morreu, segundo a resposta à pergunta 109 do CMW, como um apóstata e herege idólatra...
Vale ressaltar que o padrão estrito imposto pelo Catecismo Maior de Westminster não era o padrão do próprio Antigo Testamento. “E no oráculo fez dois querubins de madeira de oliveira, cada um da altura de dez côvados” (I Reis 6:23). “E revestiu de ouro os querubins. E todas as paredes da casa, em redor, lavrou de esculturas e entalhes de querubins, e de palmas, e de flores abertas, por dentro e por fora” (I Reis 6: 28-29). “E sobre as cintas que estavam entre as molduras havia leões, bois, e querubins, e sobre as molduras uma base por cima; e debaixo dos leões e dos bois junturas de obra estendida” (I Reis 7:29). “Para o interior do Santo dos Santos, mandou esculpir dois querubins e os revestiu de ouro” (II Crônicas 3:10).
E este Templo de Salomão, descrito como estando repleto de imagens de escultura, nos é mostrado no mesmo Antigo Testamento que faz a seguinte e bem conhecida proibição: “Não farás para ti imagem de escultura, nem alguma semelhança do que há em cima nos céus, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra” (Êxodo 20:4).
De duas uma: ou a Bíblia está se contradizendo, ou a interpretação proposta por aqueles que pensam como o já citado CMW está completamente equivocada, ainda que na melhor das intenções. Certamente a interpretação de Lutero é muito mais natural e condizente com o contexto completo das Escrituras: “Onde, porém, imagens ou estatuas são produzidas sem idolatria, então a fabricação delas não é proibida” (Contra os Profetas Celestiais). Em outras palavras, na opinião de Lutero, uma imagem em si é como uma fotografia – de nada vale, exceto pela lembrança que evoca, e por seu valor artístico. No entanto, quando o homem se vale dela para culto ou veneração, aí caiu na armadilha mortal da idolatria, e quebrou o Segundo Mandamento.
Ainda assim, muitos cristãos reformados tem, de modo sábio, proibido o uso de imagens em seus ambientes de culto. É o caso de boa parte dos anglicanos históricos. Aqui no Brasil um bom exemplo é a Igreja Anglicana Reformada, também conhecida como Free Church of England. Em seus ambientes de culto nem um tipo de imagem, esculpida, impressa, desenhada ou de qualquer outro tipo, é aceita. Porque, ainda que a intenção do artista seja meramente artística, a imagem unida ao ato de adorar pode levar os incautos a sentimentos perniciosos e a tentação. No entanto, o uso de alguma imagens para fim artísticos ou decorativos não é proibido, ainda que não seja ordenado ou sequer incentivado.
Lamentavelmente, quer por mera ignorância, quer por intenções inconfessas, esse simples fato já foi – alegadamente - motivo para se acusar tal Igreja de apostasia e ameaçá-la de cisma, como se justificativa fosse, inclusive, para a criação de uma nova denominação. Ora, que reação tal espirito divisor teria ao ler as páginas indignadas de “Contra os Profetas Celestiais”, que Martinho Lutero escreveu contra os radicais iconoclastas que, ignorando completamente o elementar princípio de que Escritura interpreta Escritura, tomavam Moisés ao pé da letra? Só podemos imaginar.
Historicamente, como era de se esperar, antes da Reforma as imagens eram abundantes nas Igrejas inglesas. Feitas de madeira, pedra, pinturas, vitrais ou tecidos, representavam Deus, os santos, as histórias bíblicas e as sagas dos grandes santos. Geralmente seu uso era decorativo e pedagógico, porém, havia também alguns casos de uso devocional – especialmente as imagens de Cristo eram bem centrais no culto, e a elas os fieis costumavam recorrer em oração. Sabe-se, por exemplo, que quando em 597 Santo Agostinho chegou a Inglaterra com a missão de evangelizar, um quadro de Jesus Cristo, pintado em madeira, lhe foi ofertado. Durante a Reforma, a grande maioria das imagens que até então existiam nas paróquias foram destruídas. Algumas, porém, subsistiram, especialmente os vitais, uma vez que os mesmos são essencialmente decorativos, sem utilidade para fins de devoção.
Contra a idolatria, sim. Contra a verdade, não.
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