Carta Aberta (ou não) à um espírito divisor. Ou, uma resposta ao texto, atualmente indisponível, "IARB na Contramão da História".
Caríssimo irmão reverendo,
Foi com você que eu, pela primeira vez, experimentei o maravilhoso tereré, chá típico do Rio Grande Sul, sua amada terra natal. E ali, tomando tereré nos intervalos de um Sínodo Geral da IARB, trocávamos várias e valiosas ideias. Discutíamos o passado e o presente, além de planejarmos o futuro. Tudo tão promissor aos nossos olhos.
Admito não ter certeza se vale a pena o esforço de lhe escrever estas linhas. Será que o senhor realmente tem tido tanto sucesso em sua empreitada divisionista? Será que as meias-verdades e invenções que tens publicado aqui e ali, tem de fato colocado tantos anglicanos reformados em cima do muro? Ou seria apenas palavras que escondem alguma mania de grandeza, ou, pior ainda, uma tentativa boçal de enfeitar suas ações com uma áurea de mártir injustiçado?
Ao que parece o senhor andou ventilando, a boca pequena, que dois ou três ministros da IARB pretendem se debandar como o senhor fez... Talvez seja verdade, talvez não. Tenho acompanhado de longe. Claro, certamente as pessoas tem seu direito a escolhas, no entanto, quando alguém pretende deixar uma denominação não precisa fantasiar desculpas, nem de se rebaixarem a seguir um divisor sem justa causa. E caso o façam, espero também que deixem de usar o nome anglicano, coisa que o senhor ainda não fez. Afinal, como diria Padre Quevedo, um anglicano sem bispo "non ecxiste"!
Digressões a parte, voltemos a nosso passado comum. Além de sonhos e planos, havia também contentamento naquele Sínodo. Lembro, por exemplo, de como nos alegrávamos por experimentar em primeira mão o modelo parlamentarista por meio do qual se dá a governança de uma Igreja Anglicana. E quando digo que “nos alegrávamos”, evidentemente considero que você estava no barco. Aliás, se bem me lembro, o irmão estava chegando de uma denominação presbiteriana, e trazia consigo várias queixas. Dizia, então, ter encontrado um porto seguro entre nós, anglicanos reformados. Aqui, claro, todos [os que querem] participam das decisões, a Igreja respeita as diferenças entre seus membros, e há um profundo fervor missionário. Adorávamos tudo isso. Se o irmão via isso como um pecado, foi no mínimo hipócrita e oportunista.
Tempos depois, quando da sua discordância a respeito do uso de ícones religiosos como forma de arte, a primeira coisa que me veio à memória foi uma cena que vivenciamos ao lado da piscina, também nos intervalos do mesmo Sínodo. Cena noturna. Cinco ou mais irmãos de testemunha. Contava-nos na ocasião que não permitia sequer que seus filhos folheassem uma versão ilustrada do Novo Testamento, uma vez que julgava isso pecado de idolatria. Foi informado por mim que como anglicanos não temos por dever ser tão radicais. Disse-lhe sem cerimônia que nosso Bispo mantém um ícone bizantino da Sagrada Família em seu escritório, e que eu mesmo tenho outro muito parecido em minha própria casa. Não foi surpresa para você! Na verdade, admitiu que já sabia disso! Nós rimos! Confraternizamos! Como era mesmo o seu discurso na época? "Não concordo com algumas coisas, mas sou submisso, respeito o modelo episcopal. Da minha parte prefiro agir diferente!". Estávamos vivendo o ethos anglicano em primeira mão! Alguém chegou a citar o "unidade no essencial, caridade na diversidade", da máxima de Santo Agostinho.
Tantos assuntos. Tantos planos. Tanta troca de ideias. Tanta votação. Por aqueles dias a Igreja recebeu com alegria nosso ingresso na Free Church Of England. Até ministros recém-ordenados passaram a fazer planos de visitar aquela que agora chamávamos carinhosamente de "Igreja mãe". Se eu colocar o teu nome entre eles não minto, correto? Nosso único receio então, e que foi amplamente debatido no Sínodo brasileiro, era a respeito da interferência da Inglaterra no Brasil - sobre isso, com muita felicidade recebemos o compromisso inglês de não ingerência, exceto naquilo expressamente dito nos formulários anglicanos e na Declaração de Princípio. Quanto a tais coisas, não me recordo de ouvir vozes contrárias, nem mesmo a sua, que agora tão veementemente se levanta como se a “nacionalização” da igreja (seja lá o que isso queira significar) fosse ponto de fé previsto nas tábuas do Sinai, ou por algum “papa” da Reforma.
De modo que, as objeções contra tuas atitudes posteriores são tão óbvias que em seu texto já podemos vê-lo numa tentativa acanhada de se desculpar. Faça mais esforço, pois escrever simplesmente que "como as coisas foram feitas de forma sutil houve demora em perceber as artimanhas", não o inocenta de tudo que fizemos e aprovamos apoiados por você. Pois é! Quem está de fora e não viu a história acontecendo que compre a sua versão, caso queira! Eu não compro, pois estive lá. Seja como for, é meu direito suspeitar do quanto o senhor demorou a perceber o que agora chamas de erro, não é mesmo? Apenas se deu conta depois que saiu, supostamente motivado pela introdução da idolatria na IARB? E, aquilo que o senhor chama de "sutil" foi proposto por meses a fio, e debatido em pelo menos dois Sínodos. E é a mesma coisa "sutil" que contou com seu voto e aprovação! A mesma coisa "sutil" que você, como todos nós, prontamente comemorou.
É por essas e outras que quando em seu texto o irmão diz que a IARB foi sendo levada a mudar de rumo de forma “sutil e metódica”, num processo que o irmão classifica como “artimanha” e “ardil”, não posso deixar de levantar alguns questionamentos. A saber:
Por qual razão, ou razões, sua voz não se fez ouvir a respeito de tais coisas, e em tais termos, nos Sínodos dos quais o irmão participou?
Por qual razão, ou razões, o irmão ainda assim aceitou ser ordenado diácono e em seguida presbítero pela IARB, recebendo por conseguinte, e de modo muito feliz, o reconhecimento formal da [em tua opinião atual] colonialista Free Church of England?
Aliás, por qual razão, ou razões, quando você não conseguiu denegrir a imagem do Bispo Josep no seio da Igreja brasileira, tão prontamente recorreu ao auxilio do Bispo Primaz, cuja matriz é justamente a Sé inglesa? Ora, por um momento o irmão resolveu aceitar a ingerência dos [agora em tua opinião] colonizadores? Ou, de outro modo, quando lhe convém a Sé inglesa tem jurisdição e utilidade, mas quando não lhe convém, é ir na “contramão da História”?
E uma curiosidade: quando a Igreja [a quem chamas agora] colonizadora, nos ombros de quem o senhor foi chorar as mágoas, julgou que suas acusações contra a igreja brasileira e seu Bispo não tinham pé nem cabeça, o senhor ficou feliz ou triste? Afinal, não deve ter sido fácil para um nacionalista pedir socorro aos colonizadores! Ou ainda: sua atual iluminação sobre as maléficas intenções de nossos colonizadores se deu antes ou depois de ter sido ignorado? Seja como for, se o seu argumento é: “as igrejas no Brasil resolveram nacionalizar, enquanto que a IARB resolveu 'estrangeirizar'”, a minha resposta para o senhor é um simples, sonoro e destemido: “E daí?”. Repito: e daí que nossa sede é na Inglaterra? E daí que preenchemos relatórios? E DAÍ?
Ademais, uma vez que seu texto pinta como absurdo o fato das paróquias da IARB precisarem cadastrar seus membros, e enviar relatórios a Sé, como explicar o irmão ter sido um dos mais fervorosos defensores da criação da nossa Credencial de Membro, que nada mais é que uma forma institucional de "contar cabeças", que você diz abominar?
Ah! E por falar na adoção do logotipo inglês, se foi algo tão abominável, por que foi justamente no senhor que encontramos a defesa mais intransigente de sua adoção por todas as paróquias? Como já conheço seu discurso, posso antecipar uma objeção. "Caro Marcelo, uma vez decisão tomada, cabia a todos obedecer! Eu estava sendo submisso a Igreja". Sério mesmo? Quer dizer que era errado, mas você obedeceu e brigou para que todos obedecessem? E somente descobriu a mudança de logo foi erro tão abominável depois que sua gritaria foi solenemente ignorada? E por falar em logomarca, se a igreja nacional escolheu usar a dos ingleses, francesas, japoneses ou mesmo a dos marcianos, a minha resposta continua sendo: "E daí?".
Honestamente? Preferia quanto você saiu se fazendo de vítima, de enganado ingênuo, reclamando que não sabia de os anglicanos reformados poderem usar, caso desejassem, e desde que fora do contexto da Liturgia, um ícone religioso. Eu preferia aquele desertor estridente, que pelo menos parecia meio atrapalhado, engraçado talvez. Mas você era mais que cômico. Sob a máscara da comédia se escondia uma tragédia anunciada - e desconfio que as nuvens já se formavam quando o irmão inventou a notícia de que o mesmo Bispo Rossello estaria planejando impor a Ordenação Feminina na IARB. Era mentira, obviamente. Uma mentira que abalou muita gente que lhe deu crédito, enquanto o irmão usava tal engano para solicitar votos contrários no Sínodo - inclusive solicitou meu apoio contra tal [suposta] apostasia, não é mesmo?
Teria sido aquele alvoroço uma primeira estratégia? E, não dando certo o irmão se agarrou a outra bandeira (como o uso de um ícone religioso como mera obra artística)? Então, não sendo suficiente para causar o abalo que esperava, terminou por ter a revelação derradeira de nos acusar de sermos uma igreja ligada a estrangeiros? Não sei. O que sei é que não houve guilhotina, como você reclama, tentando colocar sua foto no álbum dos mártires. Nenhum questionador, inclusive você, teve a cabeça decepada - a menos que a referência seja à sua própria saída da IARB, da forma como se deu - em meio a meias verdades e falsas acusações -, algo que eu classificaria como suicídio ministerial, coisa nada parecida a uma Inquisição.
Sou hoje, querido irmão, um ministro licenciado da IARB. Não voto. Não oficio ritos ou cerimônias, não falo em nome dela; enfim, não apito nada. Portanto não sou, no momento, o melhor advogado dela. E não pretendo julgá-lo como pessoa, apenas questiono suas ações e suas palavras. De julgamentos, aliás, tenho medo, até porque sou o pior dos pecadores, e temo ser julgado pelas mesmas regras que adoraria julgar os meus próximos. Tivessem os anglicanos a prática do confessionário, um livro seria necessário para minha confissão - e olhe lá!
Dito isso, creio poder terminar essa carta dizendo que seus ataques a IARB/FCE, e ao seu Bispo, são desproporcionais e injustos. E, cá entre nós, seu aparente desejo pelo áurea de perseguido é totalmente fútil. Você jamais será um mártir nesta questão. No máximo tudo que conseguirá é ser mais um a dividir o Corpo de Cristo, e nisso os herdeiros da Reforma são mestres imbatíveis - meio milênio de história e já conseguimos ultrapassar as mais de 40 mil denominações (só no Brasil). Parabéns pra nós!
Belo Horizonte, 12/10/2016.
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