Marcelo Lemos
Detinha-se agora diante da casa de um ancião da Igreja.
Vacilava em chamá-lo a porta. Tinha
consciência de quanto sua vida havia sido contrária aos preceitos do
Evangelho. Hoje, seu grande dia entre os cristãos, a arena romana
fervilhava de pagãos ensandecidos e desejosos pelo sangue de mais um
deles, Policarpo.
- "Amaldiçoe Jesus Cristo!", pediu o procônsul romano,
desejando salvar-lhe a vida.
- "Por oitenta e seis anos servi a Jesus, e
Ele nunca me fez mal algum, como poderia eu amaldiçoar meu Rei e
Salvador?".
Ele havia se deleitado em muitos espetáculos semelhantes, mas dessa vez não ficara para assistir o espetáculo
cruento.
Seu nome era Wescley(1). Músico e ator presente nas mais badaladas produções do teatro romano, ficou conhecido como "o Safadão"; não porque fosse mais imoral que a média de seus contemporâneos, mas sua arte dava vazão ao que a maioria a sua volta vivia, ou desejava viver. Entre os cristãos acabou tornando-se um símbolo de exemplo a não seguir. Suas produções artísticas exaltavam valores cultivados pelos pagãos, mas rejeitados pelos cristãos, os quais não recapitulavam nem mesmo diante das feras do famoso Coliseu.
João atendeu alegremente a porta. Era como se os horrores do dia não pudessem lhe afetar a fé. E não podiam.
- Pronto a ser batizado, Wescley?
- Sim, senhor! Quero isso com todo o meu coração!
- Antes de darmos esse passo, será bom você ouvir o que a Igreja tem para lhe dizer.
Estava ansioso. Já não era um jovem e passara a vida inteira trabalhando nos teatros romanos. Não sabia fazer outra coisa. Se parasse de trabalhar certamente passaria sede, fome e frio. Tão logo teve contato com o Evangelho percebeu que sua profissão, pelo menos naquele contexto, desonrava a Cristo e não condizia com a vida de santidade esperada de um cristão. O que faria da vida? Como sobreviveria?
Teve então a ideia de montar uma escola de atores, a fim de ensinar aos mais jovens a profissão sem que ele mesmo precisasse atuar no teatro. Os anciãos de sua igreja local ficaram em dúvida; era esta uma situação totalmente nova para eles, e resolveram escrever a anciãos e bispos mais experientes.
Sobre uma pequena mesa de madeira João tinha várias cartas: uma de Lactâncio, outra de Tertuliano e ainda uma de S. Cipriano, bispo de Cartago, além de algumas outras. Passou a lê-las para o artista recém convertido e que viera a sua porta pedindo pelo Batismo Cristão.
"Me parece que as influências depravadas do teatro são até piores que as da arena. Os temas das comédias são a violação de virgens e o amor de prostitutas... De modo parecido, os dramas expõem diante de todos o homicídio de pais e atos incestuosos cometidos por reis ímpios... Ensinam o adultério quando fazem papel de adúlteros! Que estarão aprendendo os nossos jovens quanto veem que ninguém se envergonha de tais coisas e que todos as olham com prazer?". (Lactâncio)
"O pai que protege com cuidado os ouvidos de sua filha também a leva ao teatro pessoalmente! Ali a expõe a toda linguagem indecente e vil. Como poderia ser justo ver as coisas que não são justas fazer? Será que as coisas que contaminam o homem quando saem de sua boca não o contamina quando entram pelos seus olhos, Mateus 15. 17-20?". (Tertuliano).
Nenhuma capitulação. Se era imoral atuar, como poderia ser correto ensinar outros a seguirem pelo caminho da imoralidade? Não deveria fazê-lo! Outra carta, de S. Cipriano, concordava, porém o bispo de Cartago propunha uma solução caridosa para o sustento do artista convertido a fé da Igreja, exortando os anciãos locais a darem ao mesmo o sustento necessário, a fim de que ele pudesse livrar-se das amarras do mundo. Ou ele mesmo providenciaria isso!
"Porém, se a Igreja daí não tem os recursos para sustentá-lo, enviem-no para mim e aqui lhe daremos todo o necessário para roupa e comida" (S. Cipriano).
Wescley há ouvira falar do amor sem medida que os cristãos tinham uns para com os outros, e até mesmo por seus inimigos. E ele, que até pouco era um pagão e perseguidor, agora era acolhido no seio da Igreja Primitiva. Sabia que entre os heréticos - que ousavam usar o nome do Cristo - os atores se convertiam e continuavam em suas antigas carreiras. Uma sua conhecida, que vivia de posar nua por teatros e banquetes particulares, dizia-se cristã por todo o Império, sem que os sectários se incomodassem com isso. Para eles um artista convertido podia significar maiores donativos, além de acesso a camadas mais altas da sociedade.
Entre os seguidores dos apóstolos tal coisa era impossível. "Não assistem aos jogos e não tem nenhum interesse nas diversões. Recusam os banquetes e desprezam os jogos sagrados!"; Wescley havia lido de um autor pagão que zombava da Igreja. No entanto, esses cristãos piedosos não julgavam seu passado, e além disso estavam dispostos a sacrificarem a si mesmo por seu futuro. A santidade dele era a santidade deles próprios, como comunidade de fé.
Ele, que havia assistido e apoiado o sacrifício de tantos de seus mártires, os veria agora se sacrificando por sua própria salvação e santidade de vida. Que amor era esse? E por um momento imaginou como seria o futuro daquela igreja sofredora. Talvez no todas as artes, políticas e negócios viessem a ser para o Cristo. Talvez, nunca mais um homem ou mulher entrasse para a Igreja alimentando a esperança de poder servir dois senhores, Cristo e mundo. Talvez deixassem de existir líderes que vejam nesses novos convertidos uma boa oportunidade de ganhos.
Talvez...
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(1) Apesar do nome fictício a história desse ator convertido é verdadeira e documentada na História da Igreja. A carta de S. Cipriano foi, de fato, direcionada a este caso específico, as demais citações retratam a opinião da Igreja Primitiva sobre os malefícios do teatro romano.
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