Nós, anglicanos, temos um Livro de Oração Comum. Para muitas tradições evangélicas soa estranho que cristãos utilizem formas prescitas de culto e de orações. Contudo, essa tem sido a pratica da Igreja desde os tempos dos discípulos. Se alguém nos diz que sua vontade é manter ou restaurar os costumes da "igreja primitiva", devemos lhe pedir que inicie seu trabalho adotando a oração ensinada pelo Senhor. Quando os discípulos foram a Cristo para que os ensinassem a orar, lhes respondeu: "Vós orareis assim: Pai nosso, que estais nos céus..." (S. Mateus 6:9).
Foi assim, sob a orientação direta do próprio Cristo, que nasceu a primeira oração comum da Igreja; a popularmente conhecida como "Pai Nosso" tem sido proclamada incessantemente a mais de dois mil anos, em todos os cantos da terra onde exista um grupo de cristãos. Apenas muito recentemente certas tradições evangélicas tem se negado a repetir a oração ensinada por Jesus, sob a desculpa de que Ele não deseja de seus filhos uma oração que seja mecânica ou decorada. Tomam a Oração do Senhor apenas como um modelo, não como prescrição. Certamente trata-se de um modelo, mas também de uma prescrição, pois se ordena "orareis assim".
Nosso Livro de Oração Comum chegou a nós pelos mãos de Thomas Cranmer, arcebispo da Cantuária nos dias do Rei Henrique VIII. A Liturgia de Cranmer introduziu os valores da Reforma Protestante no coração da Igreja da Inglaterra, e revolucionou o culto cristão para sempre, inclusive para comunidades fora do anglicanismo. Segundo Jonathan W. Willians, se você alguma vez assistiu a celebração de um casamento evangélico, já teve contato com vários elementos da tradição anglicana:
"Um exemplo bastante óbvio da influência da tradição anglicana, não apenas sobre os presbiterianos, mas também sobre outras denominações, pode ser encontrado no culto tradicional de casamento.
No próximo casamento a que você for, observe as expressões que serão usadas pelo pastor e pelo casal sendo unido na bênção matrimonial. Quando ouvir o ministro dizer "Caríssimos irmãos, nós estamos reunidos na presença de Deus e diante desta congregação para unir este homem e esta mulher em Santo Matrimônio...". Ou quando você ouvir os votos do noivo: "Eu, N., recebo-te, N., como minha única e legítima esposa, para ter e manter, deste dia em diante, na alegria e na tristeza, na riqueza e na pobreza, na saúde e na doença, para amar e celebrar, até que a morte nos separe, segundo a santa ordenança de Deus, e assim entrego-te minha mão".
Você pode agradecer a tradição anglicana, e em particular o Livro de Oração Comum, que nos entregou esta linda liturgia matrimonial que tem perdurado por séculos e provavelmente perdurará por muitos mais" (1).
Temos em nossos artigos e palestras, repetidamente afirmado que não existe comunidade crista sem Liturgia. Agora podemos também acrescentar que se uma comunidade de tradição evangélica celebra casamentos, utiliza uma liturgia herdada do Anglicanismo. Neste sentido, podemos dizer que as mais variadas tradições evangélicas possuem elementos litúrgicos comuns com a nossa tradição. Provavelmente a maioria os cristãos evangélicos de nosso tempo jamais pensou sobre isso.
Prosseguindo nossa reflexão queremos apontar para dois motivos que levaram Thomas Cranmer a intitular nossas rubrica litúrgicas de "oração comum".
Primeiro, temos uma oração "comum" porque feita na língua do povo. Isso pode parecer banal nos dias de hoje, mas foi uma das grandes batalhas dos Reformadores. Como se sabe, a Igreja Romana obrigava celebrações realizadas quase que exclusivamente em Latim, de modo que a congregação apenas assistia a Missa, sem participar ativamente da mesma.
Ainda hoje, na Igreja de Roma, o padre tem o "direito" de celebrar a missa em Latim, por esta ser considerada sua língua oficial. Um teólogo católico romano comenta: "Também o bispo cuide não só de promover o latim, como celebre seguidamente quer totalmente no idioma latino, quer intercalando cerimonias nessa língua em celebrações vernáculas. Principalmente a Missa pontificial seja, eventualmente, em latim" (2). Para os mais tradicionalistas, esse "direito", de fato, seria um "dever" do padre.
Ainda que já no Seculo IX dois pioneiros, S. Cirilo e S. Metodio, ousaram celebrar a Liturgia na língua do povo eslavo, para o que receberam aprovação do Papa Adriano II - foram chamados a Roma para dar explicações (3) -, nos dias da Reforma essa mesma iniciativa condenaria muitos de nossos irmãos a fogueira. Ainda que Trento não tenha condenado o uso da língua "do povo", os Reformadores defendiam a ideia de que o culto deveria ser, exclusivamente, em linguagem que o homem comum pudesse compreender.
Intimamente ligada a esta primeira razão
, temos a segunda. Possuímos
uma oração "comum" porque celebramos a Deus em comunidade. O Culto Reformado não
foi idealizado para ser assistido, mas vivido. O arcebispo da Diocese de Sidney, Glenn Davis, comenta que "uma das virtudes da liturgia anglicana e a oportunidade que as pessoas tem de se juntarem em oração conjunta, em vez de apenas assistirem a solitária oração do ministro" (4).
Todos nós
já
participamos - ou melhor, assistimos - a cultos personalistas. Pode ter sido um pregador performático
, talvez sem muito conteúdo
, mas com um grande ego. Outra possibilidade, muito comum, é
o famoso "momento do louvor", onde os holofotes são
direcionados sobre um grupo ou cantor especifico
. Algumas vezes, o 'show' pode ser bom, outras nem tanto - quando não
sofrível
, dependendo da habilidade musical. Qualquer que seja o caso, do ponto de vista da congregação
raramente se pode falar em adoração
comum.
Nao é difícil olhar para a Idade Média e condenar as praticas litúrgicas impostas por Roma. Essa é a parte fácil, e as vezes, covarde, da coisa. Difícil é olhar para nós mesmos, e reconhecer o quanto nos afastamos da Reforma. Nossos cultos são comunitários, de fato? Que utilidade tem "línguas estranhas", que os ouvintes não compreendem? Que ensino obtemos de uma pregação repleta de chavões, mantras, e palavras [alegadamente] proféticas? Qual o valor pedagógico de shows musicais, enfeitados com mil melismas, e danças proféticas ao som de um chifre de boi?
Ter um
Livro de Oração, alem de ser pratica essencialmente fiel as Escrituras, o que deduzimos da prescrição do Pai Nosso, dos Salmos, e outras passagens, ainda impede que o culto gire em torno de uma ou mais personalidades. Todo o culto acontece em função das Escrituras, e cada membro da comunidade sente-se parte ativa na adoração
comum.
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(1) http://liturgiareformada.blogspot.com.br/2014/06/reflexoes-respeito-da-influencia-da.html
(2) http://www.presbiteros.com.br/site/o-idioma-da-liturgia-romana/
(3) http://www.boletimpadrepelagio.org/index.php?option=com_content&view=article&id=9499:14-de-fevereiro-pioneiros-da-liturgia-na-lingua-do-povo&catid=23:o-santo-do-dia&Itemid=100112
(4) http://sydneyanglicans.net/seniorclergy/articles/prayer-power
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