Ser um Obrero Aprovado
“Procura apresentar-te a Deus, aprovado, como obreiro que não tem de que se envergonhar, que maneja bem a palavra da verdade.”
2 Timóteo 2:15
Patrística: A Soterologia de S. Irineu de Lião
Reverendo Jorge Aquino
Durante o ano 16º do Imperador
romano Antônio Vero (177 d.C.), muitos cristãos foram aprisionados
na região da Gália, especialmente em Lion e Viena, em face de uma
grande perseguição religiosa. Durante esse momento difícil, na
região da Frígia, estavam surgindo alguns seguidores de Montano (os
montanistas) apregoando um retorno iminente de Jesus a terra. Esse
movimento ficou conhecido pela presença de muitos “sinais”,
“maravilhas” e carismas - dentre os quais a profecia –
experienciados por muitos. Essa realidade inquietou deveras a igreja
cristã. Como consequência, alguns cristãos prisioneiros em Lion,
discordando do que estava acontecendo, escreveram cartas aos irmãos
da Ásia e da Frígia, bem assim a Eleutério, bispo de Roma,
procurando pacificar a igreja de Deus. Ao que sabemos, essas cartas
foram enviadas por meio de Irineu ao bispo de Roma.
Sobre Irineu não sabemos muito. Em
geral, costuma-se identificar seu nascimento com a cidade de Esmirna
(140 d.C.). Ainda criança, Irineu conheceu o bispo Policarpo, que
fora discípulo do apóstolo João, e que seria martirizado em 156
d.C. Sua proximidade com os apóstolos acabaram por fazer com que
fosse chamado de vir apostolicus.
Quando regressou de Roma, Irineu
foi eleito bispo pelo povo de Lion e sucedeu Potilo, que morrera em
razão dos maus tratos que recebera na prisão, estando com 90 anos.
Será durante os anos 180 e 193 que Irineu escreverá suas duas obras
conhecidas. Embora ele tenha se notabilizado por reanimar sua igreja
recém saída da perseguição, ele entraria para a história por
causa de sua refutação radical do gnosticismo, estabelecendo as
bases para os futuros combates contra as heresias.
Sobre sua morte nada sabemos com
certeza. Da época de Jerônimo, recebemos uma tradição que afirma
ter ele sido martirizado por heréticos no ano 200, quando já
contava com cerca de 70 anos de vida. Outra tradição dá conte de
que ele teria morrido em torno do ano 202 quando de um massacre geral
de cristãos em Lion, efetuado por Sétimo Severo. Não sabemos ao
certo o que ocorreu, mas a igreja celebra a memória desse mártir e
defensor da fé, no dia 28 de junho.
Quanto à sua soteriologia, quando
lemos sua obra, imediatamente nos damos conta de que ela é bastante
elaborada. No entanto, o que é mais marcante em sua soteriologia é
que ela, apesar de muito bem elaborada, manifestava uma marcante
dependência com os textos neutestamentários.
Com base na obra de Irineu, no que
diz respeito à soteriologia, descobrimos que, para ele, “a
verdadeira salvação opera-se pela encarnação do Verbo em Jesus
Cristo. O Verbo preexistente torna-se o segundo e novo Adão, a nova
fonte arquétipo da nova estirpe de seres humanos salva na história.
Basicamente, ele salva ao viver uma plena existência humana; faz o
que Adão deveria ter feito” (HAIGHT, 2003, p. 256).
Ao observarmos a obra de Irineu,
pensando sobre o “como” ocorre a salvação do homem, descobrimos
que ela se dá em três momentos bem definidos. Primeiro, ela ocorre
com a encarnação do Filho, ou seja, quando o Logos assume para si
uma realidade plenamente humana que envolve, inclusive, o corpo e
todas as consequências advindas da condição humana. Esta é uma
realidade de humilhação ou kenótica.
O segundo momento em que podemos
identificar o “como” somos salvos pelo Filho, ocorre na vivência
do ciclo vital. Jesus, nasceu e cresceu normalmente até atingir à
idade adulta. Ao fazer isso, Ele santifica todos os aspectos da vida
humana. Citando o próprio Irineu, “Eles não entendem que o Verbo
Unigênito de Deus, sempre achegado ao gênero humano, que se uniu
intimamente à sua obra pelo beneplácito do Pai, e se fez carne,
outro não é senão Jesus Cristo nosso Senhor, que por nós sofreu,
ressuscitou e voltará, na glória do Pai, para ressuscitar todo
homem, revelar a salvação e aplicar a regra do justo juízo a todos
os que estão submetidos ao seu poder. Portanto, existe um só Deus
Pai, como dissemos, e um só Jesus Cristo, nosso Senhor, que torna
presente por meio de toda a economia e recapitula em si todas as
coisas. Neste ‘todas as coisas’ está incluído o homem, criatura
de Deus, e recapitulando em si também o homem, de invisível que era
tornou-se visível, de incompreensível, inteligível, de impassível,
passível, de Verbo, homem. Recapitulou todas as coisas em si para
que ele, que como Verbo de Deus tem a primazia entre os seres
celestes, espirituais e invisíveis, a tivesse também entre os seres
visíveis e corporais, e para que, ao assumir em si esta primazia e
ao tornar-se cabeça da Igreja atraísse a si todas as coisas, no
tempo oportuno (IRINEU, CH. 3.16,6).
O terceiro momento que revela o
“como” Jesus nos salva, pode ser identificado com a palavra
santificação. Como assevera Haight tratando do assunto, essa
santificação “perfaz-se por absoluta obediência à vontade de
Deus, que, por um lado, reverte a desobediência de Adão e, por
outro, repele as investidas e as tentações de Satanás em favor da
desobediência” (HAIGHT, 2003, p. 256, 257). Na obra de Irineu,
aprendemos que a obediência é um elemento fundamental na economia
da salvação porque é ela que nos faz reverter toda a nossa
propensão ao pecado, bem assim, toda a desobediência da história.
Vejamos, mais uma vez, a manifestação de Irineu acerca desse
assunto: “Sendo impossível ao homem, vencido e decaído pela
desobediência, reformar-se e conquistar a palma da vitória, e, por
outro lado, por estar em poder do pecado, obter a salvação, o
Filho, Verbo de Deus, operou ambas as coisas: ele, que era o Verbo de
Deus, desceu de junto do Pai, encarnou-se, rebaixou-se até a morte e
assim atuou perfeitamente a economia da nossa salvação. (...) Mas
como nosso Senhor é o único verdadeiro Mestre, o Filho de Deus,
verdadeiramente bom, suportou o sofrimento, ele, o Verbo de Deus,
feito Filho do homem. Ele lutou e venceu: era o homem que combatia
pelos pais, pagando a desobediência pela obediência; amarrou o
forte e libertou o fraco e deu a salvação à obra modelada por ele,
destruindo o pecado. Porque o Senhor é cheio de misericórdia e
compaixão e ama o gênero humano. Aproximou-se e reuniu, como
dissemos, o homem a Deus. Se um homem não tivesse vencido o inimigo
do homem a vitória não seria justa; por outro lado, se a salvação
não tivesse vindo de Deus, não a teríamos de maneira segura; e se
o homem não estivesse unido a Deus não poderia participar da
incorruptibilidade. Era necessário, portanto, que o Mediador entre
Deus e os homens, pelo parentesco entre as duas partes,
reestabelecesse a amizade e a concórdia, procurando que Deus
acolhesse o homem e o homem se entregasse a Deus. De fato, como
poderíamos participar da filiação adotiva de Deus se não
tivéssemos recebido a comunhão com ele por meio do Filho, se o
Verbo não tivesse entrado em comunhão conosco encarnando-se? E
justamente por isso, passou por todas idades da vida, conferindo a
todos os homens a comunhão com Deus. (...) Como pela desobediência
de um só homem, que foi o primeiro e modelado da terra virgem,
muitos foram constituídos pecadores e perderam a vida, assim pela
obediência de um só homem, que foi o primeiro e nasceu da Virgem,
muitos foram justificados e receberam a salvação. Portanto o Verbo
de Deus se fez carne, como diz Moisés: A obra de Deus é veraz. Ora,
se ele não tivesse realmente assumido a carne, mas somente a
aparência, a sua obra não seria veraz. Mas apareceu o que era na
realidade: o Deus que recaptulava em si a modelagem antiga, o homem,
para destruir o pecado, abolir a morte e vivificar o homem; por isso,
a sua obra é veraz” (IRINEU, CH. 3.18.2,6,7).
Em sua grande obra Contra as
Heresias, podemos ver que Irineu desenvolve uma doutrina chamada
de “recapitulação”. Esta doutrina está inserida em sua visão
histórica do homem e do mundo, que se orientam para Cristo. Em
Cristo todas as coisas são recapituladas ou reassumidas, ou seja,
tudo o que foi começado em Adão é reassumido em Cristo e o mundo é
o ambiente no qual se desenrola esta história.
Para entender melhor esse termo,
devemos lembrar que a lei se resume no preceito do amor (Rm 13: 9).
Isso significa que o amor recapitula em si mesmo todas as leis do
Antigo Testamento de tal forma que, aquele que vive na prática do
amor, realiza tudo o que foi preceituado, levando-o à plenitude. O
termo significa, portanto, “resumir”, mas com a conotação de
“levar à plenitude”. Em Efésios 1: 10 lemos que Cristo vai
congregar “em si todas as coisas, na dispensação da plenitude dos
tempos, tanto as que estão nos céus quanto as que estão na terra”.
Eis aqui o desígnio de Deus no que diz respeito à plenitude dos
tempos. Conforme afirma Figueiredo, “Cristo restaura a unidade do
plano de Deus, reunindo em si judeus e gentios, escravos e livres, e
assumindo os poderes cósmicos. Tudo retorna a Ele como o ponto de
harmonia de todo o universo” (FIGUEIREDO, 1986, p. 140).
É importante perceber que o termo
grego para “recapitulação” (anakefalaiôsis) traz
consigo o sentido de primado, ou seja, em Cristo – que é o Senhor
do universo -, tudo encontra sua razão de ser, sua unidade e seu
verdadeiro sentido. Segundo comenta Helcion Ribeiro, à nota 203
presente no texto de Irineu (3.18.1), ele assim assevera que “A
doutrina da recapitulação, tomada de Ef 1,20, reafirma que Cristo
encarnando-se fez-se cabeça, concentrou em si, re-capitulou na sua
pessoa toda a criação. Antes do pecado, tudo estava harmoniosamente
dirigido para Deus. Agora Cristo, representando individual e
coletivamente a criação toda, restabelece por sua imortalidade a
incorruptibilidade, a harmonia universal – que atingirá sua
plenitude na ressurreição e na visão de Deus”.
Comentando a visão soteriológica
de Irineu, assim se expressa Paul Tillich: “Irineu chamava a
salvação de anakephalaiosis (recapitulação). Em latim se
lia recapitulatio. Referia-se a Efésios 1.10 que dizia que
todas as coisas no céu e na terra se reuniam em Cristo. Irineu
construiu a sua ideia de história da salvação a partir daí.
Queria dizer que o desenvolvimento partido em Adão resumia-se em
Cristo e nele se realizava plenamente. A nova humanidade começava em
Cristo. Em Cristo, finalmente, se alcançava o que a humanidade tinha
de ser e que não chegara a ser por causa de Adão. Entretanto, essa
plenitude não se referia apenas a humanidade, mas também ao cosmos.
Para realizar tudo isso Cristo teve que participar da natureza de
Adão. Dessa forma, Cristo é o começo dos vivos enquanto Adão é o
início dos mortos. Mas Adão se cumpre em Cristo; querendo dizer que
Cristo é o homem essencial e Adão o homem que deveria ter sido esse
ser pleno e não foi. (p. 54). Para citar o próprio Irineu, “Devido
a Seu amor imensurável, (...) Ele se tornou aquilo que somos, a fim
de possibilitar que nos ternemos aquilo que Ele é” (IRINEU, In
KELLY, 1994, p. 128).
Segundo o pensamento de Tillich,
esta reflexão feita por Irineu era surpreendentemente mais profunda
do que a teologia popular do século XIX. Segundo seu pensamento,
Irineu pensou com profundidade sua teologia assim como a adequação
ao paradoxo do cristianismo, sem se tornar irracional, idiota ou
absurdo.
Mas, afinal, qual seria o papel da
cruz em sua soteriologia? Para responder a essa questão, precisamos
compreender que a leitura hermenêutica que Irineu possuía o fazia
enfocar a realidade divina a partir de dois prismas diferentes. De um
lado, ele observada o seu aspecto metafísico e teorético,
procurando examinar o próprio “ser” intrínseco da divindade.
Mas, do outro, ele procurava compreender a “economia” da
salvação, ou seja, como Deus se manifestava no processo ordenado de
sua auto-revelação. A partir do primeiro ponto de vista, afirma
Kelly (1994, p. 77, 78) “Deus é o Pai de todas as coisas,
inefavelmente uno, contendo em Si, ao mesmo tempo, desde toda
eternidade, Sua Palavra e Sua Sabedoria. Entretanto, ao Se fazer
conhecer ou participar pessoalmente da criação e redenção, Deus
extrapola ou as manifesta; na condição de Filho e de Espírito,
Eles são Suas ‘mãos’, os veículos ou formas de Sua
auto-revelação. Assim, Irineu podia afirmar que ‘pela própria
essência e natureza de Seu ser existe um só Deus’, ao mesmo tempo
em que ‘de acordo com a economia de nossa redenção, existem tanto
o Pai quanto o Filho’”. A partir dessa realidade dual, é
possível se aproximar de sua soteriologia e perceber que, se de um
lado existe um aspecto mais metafísico associado à anakefalaiôsis,
no qual a salvação está muito associada à encarnação, e do
outro, existe a leitura econômica que se centra no que ocorreu com
Cristo, na cruz.
Em Irineu percebemos um exemplo da
teoria que ficaria conhecida como “teoria ‘física’ da
expiação”. Por esta teoria, toda a humanidade estava presente em
Adão e em sua queda, mas, recebeu a oportunidade de ter um novo
começo por meio de Cristo, o segundo Adão. Se, pela desobediência
do primeiro Adão o pecado e a morte foram introduzidos no mundo,
pela obediência do segundo Adão, Deus nos dá a vida e a
imortalidade. Para muitos defensores dessa teoria, a redenção é o
resultado da própria encarnação. No entanto, parece que essa não
uma verdade que se possa abraçar com rapidez. No mínimo, o que
podemos dizer é que a encarnação é uma pressuposição da
redenção. E as razões são bem claras. Em primeiro lugar, afirma
Kelly (1994, p. 130), Irineu deixa claro que “Cristo nos redimiu
com Seu sangue e, ao empregar as figuras de nossa escravidão sob o
diabo, ele pode falar do sangue do Salvador como nosso resgate. (...)
Em segundo lugar, e isso é mais importante, ele enfatiza que, se a
essência do pecado de Adão foi a desobediência, a obediência de
Cristo era indispensável; (...) Por isso, ele ressalta, como exemplo
de obediência firme e decidida a resistência de Cristo às
tentações que lhe foram lançadas pelo diabo (...). a fim de
demonstrar tal obediência, o segundo Adão teve de passar por todas
as etapas da vida, sem excluir a própria morte. Analisadas sob este
prisma, Sua paixão e crucificação encaixam-se perfeitamente, pois,
‘ao destruir a desobediência do homem, realizada primeiramente na
árvore, Ele Se tornou obediente até a morte, e morte de cruz,
curando a desobediência ocorrida na árvore pela obediência numa
árvore’”. Além disso, existem inúmeras passagens na obra de
Irineu que afirmam ser a morte de Cristo o instrumento de nossa
reconciliação com Deus, a nossa propiciação junto ao Pai, e o
oferecimento de um sacrifício para a nossa redenção. O que estamos
pretendendo fazer é unir a teoria da recapitulação à da expiação
na cruz, entendendo que no madeiro, ou seja, por sua paixão e morte
sacrificial, Jesus expressou sua suprema
e necessária obediência à
Deus.
Para concluir, é importante dizer
que Irineu não é um teólogo especulativo. Na realidade, afirmam
Altaner e Stuiber: ele “Contentava-se, em geral, com expor os
argumentos básicos das Sagradas Escrituras para a pregação da fé
cristã” (ALTANER; STUIBER, 1988, p. 123, 124). Ao dizer isso, o
que se está procurando afirmar é que seu trato da doutrina teve
como base a argumentação bíblica e a apologia, o que,
necessariamente, o fazia atuar mais voltado para a retórica do que,
propriamente, para a especulação. Para ele, a redenção tinha que
ser algo real, e não constituía apenas na comunicação de uma
gnose.
Referências bibliográficas:
ALTANER, B.; STUIBER, A.
Patrologia. São Paulo: Edições Paulinas, 1988
FIGUEIREDO, Dom Fernando Antônio.
Curso de Teologia Patrística. Vol 1: A vida da igreja primitiva.
Petrópolis: Vozes, 1986
HAIGHT, Roger. Jesus: símbolo de
Deus. São Paulo: Paulinas, 2003
IRINEU, Contra as Heresias. São
Paulo: Paulus, 1995
KELLY, J.N.D. Doutrinas centrais da
fé cristã: origem e desenvolvimento. São Paulo: Vida Nova, 1994
TILLICH, Paul. História do
pensamento cristão. s/l: ASTE, s/d.
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Autores
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